sexta-feira, maio 17

Putos a roubar maçãs - III


Tomás sentava-se, descalço, em frente ao aquecedor, para aquecer os pés cobertos pelas meias rotas. O padre passava a mão na cabeça do pequeno Afonso e dizia-lhe
-Estás seguro! Não tens só um irmão, tens aqui um protector imenso, aprende com ele e serás um bom homem.
Afonso não ligava ao que o padre dizia, tudo o que importava era comer, matar aquela fome enorme.
A vida dos irmãos era isto. Roubar para comer, comer para roubar. Receber do padre, dar aos fiéis.
Tomás tinha dezasseis anos, Afonso onze. Órfãos. A mão morreu quando Afonso nasceu, durante o parto. O pai fugiu quando Tomás tinha onze anos. Desde aí ficaram com os avós. Os avós acabaram por morrer passado alguns anos. Até agora cinco famílias tinham acolhido os irmãos e todas elas acabaram por despeja-los. Vivem nas ruas há dois anos. Moram numa casa abandonada ao fundo da Rua 40. Têm camas improvisadas com sacos de serapilheira como colchão, jornais como lençóis, cartões como cobertores, um plástico como ededrom e as almofadas eram feitas de sacos de asas forrados com jornais.
Todos os dias, mal o relógio da igreja tocava, às nove e meia, Afonso deitava-se e Tomás ia tapá-lo, primeiro ajeitando a almofada, depois puxando-lhe os cobertores para lhe tapar o peito e, por fim, o ededrom. Depois de Afonso bem aconchegado, Tomás sentava-se no chão, junto à cama pegava no livro que o padre lhe dera e começava a folhear. Procurava uma parte específica para ler ao Afonso. Ao fim de algum tempo encontrou e começou a ler, devagar:
“Voltou então para junto da raposa:
- Adeus… -disse.
- Adeus – disse a raposa. Vou confiar-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
- O essencial é invisível para os olhos – repetiu o principezinho, para depois se lembrar.
- O tempo que gastaste com a tua rosa é que a fez ser tão importante.
- O tempo que gastei com a minha rosa… - repetiu o principezinho, para depois se lembrar.
- Os homens esqueceram-se desta verdade – afirmou a raposa. – Mas tu não te hás-de esquecer. És sempre responsável por aquele com quem tens intimidade. És responsável pela tua rosa…
- Sou responsável pela minha rosa… - repetiu o principezinho, para depois se lembrar.”
Para Afonso aquele livro falava de um príncipe que vinha do céu e aquela parte que o seu irmão lhe lera era sobre a rosa do príncipe e nada mais.
Aquela parte do livro era uma das preferidas de Tomás. Ela até podia falar de uma rosa, mas, para Tomás, era mais que isso. Quando leu pela primeira vez o livro logo foi a correr mostrar ao padre.
-Senhor, senhor!
-Diz Tomás, que se passa?
-Li o livro já. Mas houve uma coisa de que gostei.
Sem pestanejar abriu o livro na página correcta e mostrou ao padre.
-É uma parte interessante, mas porque gostaste tanto dela?
-Senhor, o Afonso.
-O que tem o teu irmão?
-O Afonso é a minha rosa, não é?
O padre riu-se.
-Sim. O Afonso é a tua rosa. Cuida bem dele para ele crescer são e forte. Para ele vir a ser um homem como tu te estás a tornar e lembra-te, sempre, do que a raposa disse “És responsável por aquele com quem tens intimidade. És responsável pela tua rosa…”
-Nunca! Nunca me esquecerei!
E, de facto, assim foi, nunca se esqueceu de tal coisa.
Tomás fechou o livro e deu boa noite ao irmão, beijando o pobre adormecido na testa e repetiu baixinho:
- És e serás sempre a minha rosa.
Amanhã Afonso continuará a ser a rosa do Tomás, mas e o Tomás?
Será que alguém irá acolher os irmãos e irá, por fim, tratá-los como a rosa do livro?

-A história ainda pode mudar! Amanhã, talvez. Boa noite Afonso. Boa noite Tomás.

E o principezinho puxou a cadeira e viu, novamente, o pôr-do-sol lá, no B612. Com esta, já eram quarenta e três vezes que ele via o pôr-do-sol…

1 comentário:

  1. Nunca contei as vezes que vi o pôr-do-sol talvez porque não me lembre deles, porque não houve recordações sensatas deles, alguém que mo fizesse guardar, mas o principezinho viu-o e não se esqueceu dele. oh como o viu...quero lembrar-me dele também.

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